Estava num barzinho, na Lagoa da Conceição, numa noite de janeiro... Por mais de uma hora, estava sentada sozinha com um nó na garganta e um embolado de palavras enchendo sua boca. Estava a ponto de explodir. Olhava por todos os lados a multidão circulando, tagarelando, rindo, gesticulando... e ela ali, estática. Suas pernas pareciam dormentes, suas mãos levavam um copo à boca de vez em quando. As únicas palavras trocadas com alguém naquele dia tinham sido com a garçonete ao pedir uma dose de rum e uma coca-cola. Não podia pagar seu uísque preferido, então... Seus dedos já haviam picotado e enrolado em pequenas bolinhas mais de um guardanapo, enquanto ouvia a música que tocava, quando tirou da bolsa uma caneta vermelha e começou a rabiscar um novo guardanapo:
“Se não se pode falar...
Pode-se escrever...
Mesmo que ninguém leia...
Mesmo que não tenha poesia.
É isso!
Falta poesia
No olhar
No rosto
No corpo
Eu e a solidão em meio a tantos...
Será tudo matéria? Tudo só matéria?
Onde estão os sentimentos? Se fosse poeta descobriria os sentimentos, as emoções...
Mas não sou!
Talvez ainda não seja... Estou trasbordando de idéias... como o professor universitário que procurou o Mestre Zen. Talvez tenha que me esvaziar de idéias... esvaziar tudo que carrego: crenças, idéias... Talvez até os sentimentos, o medo, a ansiedade...
Medo de quê?? De mim mesma.
Ansiedade por quê?? Para encontrar alguém e poder fugir...
Tantas são as reticências...
Tantas são as interrogações!
...
Saudades...
Fujo
Mas até a música...
É hora de ir...”
Naquele instante ouviu alguém perguntar bem perto do seu ouvido:
- Você escreve poesia?
- Ahh?
- Você está escrevendo na mesa de um bar, sozinha. Ninguém faz isso a não ser que seja poeta.
A figura era estranha: vestia um jeans rasgado, camisa desabotoada e amassada, como se tivesse acabado de sair de um cesto, cabelos encaracolados meio despenteados, olhos claros. Não parecia bonito, muito menos atraente... Mas ela havia desejado ser vista, tinha uma certeza inexplicável de que chamaria a atenção de alguém por estar escrevendo naquelas circunstâncias e, de fato, chamou.
Somos centros de força magnética, atraímos aquilo que queremos pelo nosso comportamento.
- Posso sentar? Estava procurando um lugar para escrever... Desculpe... Mas vi você escrevendo e não resisti. Posso?
- Senta!
- Posso ler? Posso ler o que você estava escrevendo?
Ela apenas acenou “não” com a cabeça, meio atônita. Estava se preparando para ir embora e... agora sentia-se responsável pelo seu desejo concretizado: alguém para conversar.
E seu receio de que ele descobrisse sua farsa. Ela não escrevia poemas, mas também não desmentiu quando ele perguntou. Estava enredada na sua própria armadilha. Não acreditava que aquele rosto jovem soubesse fazer versos.
Ele, então, como se adivinhasse suas dúvidas, tirou do bolso sua carteira e dela, bem devagar, um papel dobrado já amarelado.
- Esse já comecei faz tempo, mas não consigo terminar... Não acho que esteja bom.
- Posso ler?
Levantando as sobrancelhas rapidamente estendeu o papel para ela. Ela o leu atenciosamente e gostou do leu. Eram versos sentidos, vividos e espelhavam suas angústias presentes.
Logo, ele tomou-lhe a caneta e outro guardanapo, olhou longamente a rua cheia de transeuntes, o movimento dos bares, as luzes coloridas do ambiente. Voltou o olhar para ela e começou a escrever...
Ela queria falar, conversar, precisava esvaziar-se do excesso de palavras embrulhadas na sua boca, mas como ele quase não respondesse suas tentativas de diálogo, respeitou aquele momento. Quando ele voltou a olhá-la ela perguntou:
- Posso ler esse também?
- Sei lá, não consigo escrever aqui... Muito barulho. Vamos para um lugar mais sossegado?
- Deixe eu ler? Insistiu.
Poesia
Triste, desfeita
Incompleta, dissonante
Distante...
Assim como é o poeta
E sua vida
Como eu, como tu.
Como poderia conhecê-la em alguns instantes? Nem lhe tinha dado a oportunidade de falar de si e já a descrevia tão fielmente.
Saíram caminhando nas margens da Lagoa iluminada onde havia menos gente. Sentaram na grama olhando as luzes que refletiam no grande lago. Conversaram, falaram de leituras, de autores, de suas vidas. Trocaram confidências... mas não contatos.
Mais tarde, numa esquina que apontava direções opostas, despediram-se com um beijo no rosto e a promessa (não dita) de novos encontros que não se concretizaram.
Mas o poeta e sua (falta de) poesia ficarão para sempre na sua memória e na sua história.
quinta-feira, 8 de julho de 2010
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